“O nome negrita veio porque naquela altura os nomes das empresas eram Mulatinha, A Negrita, A Cabo Verdiana. Eram todos nomes oriundos normalmente do Ultramar.”
Carlos Pina, Café Negrita
Este projeto compila algumas de diversas marcas que apresentam na sua identidade ilustrações de conotação colonial.
Estas marcas usam esteriótipos raciais, que perpetuam o histórico de discriminação de minorias étnicas, apropriação cultural pelo uso inadequado de elementos de grupos minoritários sem respeito ou compreenção.
Visto que Portugal foi um país explorador ao longo de séculos, continuar a colocar estas ilustrações como imagens de marca, faz com que se transpareça o atraso histórico.
Essas projeções imperiais e coloniais encontraram-se no imaginário visual coletivo então produzido, onde se incluem as marcas comerciais e as respetivas embalagens dos seus produtos. Este imaginário encontrava-se largamente impregnado de preconceitos etnográficos e de representações caricaturais da imagem do negro.
O intuito desta pesquisa é descolonizar a ilustração, mostrando que estas ilustrações podem ser subtituidas por elementos que não sejam colonialista, racistas ou machistas, sem prejudicar a história e tradição do estabelecimento.
Em relação ao nosso estudo de caso e mais especificamente na análise de questões associadas a referências coloniais, foram observados rótulos de produtos com motivos e/ou designações de marca que remetem para contextos relacionados a antigas colónias portuguesas.
Constatou-se a existência de representações de populações nativas e de respetivas manifestações culturais, assim como motivos exóticos ultramarinos.
Nos casos referentes a temas coloniais, quando são utilizadas ilustrações representando habitantes locais, estes surgem em representações estigmatizadas, ou seja, normalmente o nativo é representado descalço e de tronco nu, numa ausência de traços de civilidade. Esta representação ia ao encontro da ideologia do regime que, na perpetuação de estereótipos, pretendia manter a sensação da superioridade do colonizador e, consequentemente, a hegemonia do Império.
Para nós, portugueses (e não só), África era como uma folha de papel em branco onde se poderia imaginar ou forjar qualquer narrativa fantasiosa, pois estas encontravam-se deslocadas para uma terra remota e bastante diferente.
No que diz respeito às marcas nominativas, ou seja, aquelas compostas apenas por elementos verbais, nomeadamente palavras, para além do uso evidente de designações de origem geográfica, como é disso exemplo os vários registos da palavra “África” para diferentes tipos de produtos, observa-se o uso de variadas designações relativas ao nativo africano. São disso exemplo palavras como “africano”, “preto”, “pretinho”, “negro”, “negrinha” ou “negrita”, algumas delas existentes em ambos os géneros. Nestas palavras, que podem constituir marcas nominativas de uma forma isolada ou em combinação com outras palavras, observa-se um número consideravelmente maior de exemplos do género feminino em detrimento do masculino. Para além disso, observa-se o uso recorrente do diminutivo, naquilo que se poderá considerar como uma infantilização do nativo africano. Alguns exemplos incluem as marcas nominativas “Africano”, “Cabeça de Preto”, “Cabêça Negra”, “Carícias de Negro”, “De Tanga”, “Escravo”, “Miss Angola”, “Negral”, “Negrinha”, “Negrita”, “Negrito”, “Negrina”, “Petit Négrillon”, “Pretinha”, “Pretinhos do Cacém e Agualva”, “Preto Especial”, “Preto Fino”, “Zulu”, entre outras.
Relativamente às marcas figurativas, ou seja, aquelas compostas apenas por elementos figurativos, nomeadamente desenhos, imagens ou figuras, observa-se o uso recorrente de imagens caricaturais do nativo africano, normalmente imagens abstractizantes dos seus traços fisionómicos. Estas representações são normalmente infantilizadas e de propósito humorístico – os lábios são exageradamente grossos; olhos e orelhas também eles desproporcionalmente grandes; cabeça normalmente esférica; uma certa maturidade indeterminada. Estes tipos de desenhos caricaturiais tornaram-se tão ubíquos que deixaram de ser meras representações, passando mesmo a ser o discurso dominante. Isso observa-se na marca Café “O Rei dos Cafés” eSabão higiénico “Negrito”.
Quando o nativo africano não é representado através de uma representação caricaturial, ou seja, quando a sua fisionomia é próxima da realidade, é recorrente o uso da nudez a fim de ilustrar uma suposta inferioridade cultural, um certo estado “primitivo” e “selvagem”. O nativo africano nu ou parcialmente vestido (mas, mesmo quando parcialmente vestido, nunca é da cintura para cima), em muitos casos surge coberto apenas com folhas naturais e/ou adornado com joalharia nativa e na quase totalidade dos registos surge de pés descalços, caracterítsicas que reforçavam o seu carácter exótico. Como se observa nos logotipos da “Miss Angola” e o Algodão “Preto fino”.
Em suma as marcas comerciais forneciam uma visão coerente de diferença racial ao difundirem e a perpetuarem estereótipos etnográficos para cada um dos portugueses, com implicações importantes para o nacionalismo em Portugal e para a identidade do consumidor português. As marcas comerciais, pela força da sua ubiquidade – presentes no espaço público e na imprensa através de anúncios; e inseridas no seio da esfera privada dos consumidores (as suas próprias casas) através de embalagens – constituíam um importante veículo de transmissão ideológica e hoje em dia trata-se de um inestimável e ainda pouco explorado campo para o estudo da construção de identidades na época colonial. A cultura visual comercial ainda é muito pouco estudada em Portugal e poderá oferecer uma perspetiva inteiramente nova no estudo da história das representações.
Poderemos retirar para já algumas conclusões e afirmar que existem duas abordagens distintas às imagens aqui apresentadas – a primeira que vê os ilustradores como manipuladores; a segunda que vê a ilustração como um produto cultural, ou seja, como práticas sociais geram imagens, imagens geram práticas sociais.
Almanaque Harmonia, 2024
Joana P Antunes
Joana T Antunes
Andreia Moreira